
A pertinente provocação levantada pela jornalista Claudia Penteado diante do artigo de Dora Kaufman ("IA é a quinta ferida narcísica"), em uma recente publicação no LinkedIn, é talvez uma das mais incômodas de 2025:
"Se máquinas agora também escrevem, criam, argumentam, narram, emocionam, o que nos resta de intransferivelmente humano?"
Como artista visual que atua com imagens generativas há mais de 2 anos, arrisco a afirmar: a IA está longe de substituir alguns dos aspectos mais essenciais da experiência criativa humana. Pelo menos três dimensões permanecem como território do humano. Talvez quatro.
1. Desejo | A centelha que antecede o gesto
Toda criação começa com uma pergunta silenciosa: O que eu quero criar? Esse desejo não é um comando nem um cálculo. É um impulso interno, subjetivo, afetivo. É falta, anseio, tensão.
A IA não deseja. Ela responde. Não sonha, não se angustia, não busca um sentido. Apenas oferece variações com base no que já existe. O desejo humano é indomável, errático, poético. Escrevi sobre isso em 2023, num post sobre desejo e imagem generativa no LinkedIn.
2. Logos | A palavra como ação, não apenas linguagem
Evocando o conceito clássico de Logos, nos referimos à palavra como agente criador, como verbo, como ação. Haja!
A linguagem que não apenas descreve, mas transforma. Que carrega intencionalidade, visão e responsabilidade.
A IA “fala”, mas não se compromete. Não realiza um agir simbólico, apenas opera com sintaxe. Constrói frases, mas não carrega propósito existencial nem responsabilidade semântica. Não possui intenção.
Já nós, estamos sempre dizendo algo sobre nós mesmos, sobre o mundo, sobre o outro. Ao decidir, assumimos uma posição, uma estética e uma visão de mundo. Isso é profundamente humano e ético. O Logos é o gesto de tomar uma posição simbólica no mundo.
3. Curadoria | O destino que se dá à matéria bruta
A curadoria é escolha e contexto. É o momento em que damos forma, sentido, direção àquilo que surgiu (seja por IA ou por outros meios). A IA pode gerar 1000 imagens. Mas qual delas ressoa com o mundo? Comigo? Com minha história?
Sou eu quem escolho, seleciono, recuso, organizo, edito, transformo. Curadoria não é um gesto técnico, mas um ato de sentido. E esse discernimento estético é atravessado por cultura, memória, intuição, história e intenção.
Todo criador é um editor do invisível. A IA não sabe o que fazer com o que cria. Nós sabemos. Ou não. Viu? Até a dúvida é humana.
A curadoria exige subjetividade, cultura, sensibilidade, e talvez o mais importante: consciência de tempo e lugar. A IA pode variar estilos; você os posiciona dentro de uma narrativa de sentido.
4. Memória | A experiência vivida e ressignificada
A IA possui dados; nós possuímos lembranças. Associamos imagens com afeto e perda, dor e glória, presença e ausência. A nossa memória é afetiva e subjetiva, e dela nasce muito da arte, da intuição e do gesto.
A IA arquiva. Nós ressignificamos.
*A imagem em anexo faz parte do editorial Makeda | The Queen of Sheba.
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